sexta-feira, 20 de março de 2020

Conto: O cuidador, de Maria José Magalhães - Parte I


Numa pequena aldeia de França existia uma povoação feliz, viviam a sua vida sem sobressaltos. Nesse povoado existia um castelo onde morava um príncipe. No entanto, os habitantes nem se lembravam que ele existia, o castelo ficava distante no meio de um denso bosque escuro e as estradas que lá iam ter eram estreitas e sinuosas. Ninguém se atrevia a percorrer tão perigosos caminhos. Dizia-se que o castelo estava assombrado, que o príncipe já tinha morrido, que era só um fantasma, assim como todos os seus criados. Os jovens da aldeia faziam apostas e desafiavam-se para lá ir mas nenhum era corajoso o suficiente.

Até que um dia um cavalo negro apareceu na povoação, um belo animal com o pelo lustroso e bem tratado. Tinha uma sela grandiosa, digna de um rei. Pendurado nessa sela estava um papel grosso e comprido. Os aldeões espicaçados pela curiosidade e uns pelos outros leram as letras gordas e douradas: CONVITE. Depois chegando-se mais perto leram as letras pretas mais pequenas: Em nome do príncipe convidamos toda a população para o casamento real no sábado, dia 25 de maio, às 20h00.
Estas palavras causaram grande espanto em todos, toda a aldeia se reuniu à volta do cavalo. A aldeia estava num rebuliço, ninguém conseguia parar de falar e especular. O evento era daí a dois dias, e quando o grande dia chegou, ou melhor, a grande noite, os aldeões vestiram as melhores roupas e apreensivos percorreram o bosque até ao castelo.

Os caminhos estavam iluminados com pequenas luzes brilhantes, de todas as cores. O castelo e os jardins estavam magníficos, tudo brilhava. Os homens e mulheres da aldeia nunca tinham visto beleza igual, estavam maravilhados, encantados. Atravessaram o jardim e entraram no castelo, uma enorme mesa enfeitada com cristais de diversas cores e arranjos de flores nunca vistas, encontrava-se no meio de um grande salão. Vários criados indicaram-lhes os lugares onde se deveriam sentar. Os criados eram novos, velhos, de diferentes raças, eram diferentes, pálidos, quase translúcidos. Alguns pareciam familiares. Quando todos estavam sentados apareceu o príncipe, agradeceu a todos a sua presença e juntou-se a uma figura vestida de branco, o mestre da cerimónia. Passados alguns instantes ouviu-se uma música cristalina e uma mulher entrou no grande salão. Tinha longos cabelos louros, a pele muito pálida, um sorriso encantador.

Ouviu-se um murmúrio por toda a sala e depois um silêncio total. A cerimónia terminou, os noivos beijaram-se com ternura e começou a festa. Serviram comida deliciosa, diferente de tudo o que tinham comido. Seguiu-se um baile e os príncipes dançaram toda a noite, até que desapareceram sem ninguém dar conta. Todos exceto Nathalie, uma jovem curiosa que os viu sair discretamente do salão e os seguiu com cuidado. Viu-os a subir o escadório central e quando estavam fora de vista subiu também silenciosamente. No topo das escadas viu-os entrar por uma porta ao fundo de um corredor, em pezinhos de lã chegou até à porta, que, para seu espanto, estava apenas encostada. Espreitou a medo, mas como não viu ninguém e a curiosidade era mais forte, abriu cuidadosamente mais um pouco e entrou. Entrou e assombrou-se, o seu corpo estremeceu, estava numa biblioteca espantosa. Tinha milhares e milhares de livros, todos arrumados em prateleiras do chão até ao teto. Era magnífica. Nathalie ficou tão espantada que até se esqueceu de respirar... quando voltou do seu transe lembrou-se de onde estava e escondeu-se atrás de um cadeirão. Ao fundo via os noivos encostados um ao outro. De repente surgiu uma luz forte e por instantes perdeu a visão. Quando a recuperou eles já não estavam lá.

Levantou-se e viu um livro no chão, era um livro antigo de capa em cabedal castanho-escuro. Tentou abri-lo mas não conseguiu. Ouviu vozes lá fora, os convidados estavam a sair. Pegou no livro e correu até encontrar seus pais. Já em casa tentou novamente abri-lo de todas as formas que se lembrou, acabando por desistir. Até que se esqueceu dele numa gaveta pousado.

Entretanto o príncipe e sua noiva entraram numa floresta muito densa, cheia de humidade verde. Dirigiram-se a uma modesta casinha feita de madeira junto a um riacho, rindo e brincando um com o outro. Mas quando entraram depararam-se com um cenário desolador, tudo estava partido e fora do lugar. Laiane abraçou-se a Michel tremendo muito. Ele com ar sério fingiu despreocupação: “não te preocupes, os colares estão em segurança”, disse, tocando ao de leve no colar que levava ao pescoço, “temos de sair daqui, eles podem voltar. Voltaremos para o meu castelo.”

Com um passo apressado dirigiram-se para a clareira onde tinha a pedra grande. Deram as mãos, tocaram nas pedras dos seus colares, fecharam os olhos e... nada aconteceu. Estavam desconcentrados, tentaram várias vezes até que desesperados se deixaram cair no chão.

“Para onde iremos?”, perguntou Laiane, recomeçando novamente a chorar. “Vamos a casa do teu pai”, respondeu Michel. “Não, ele mata-te. Ele disse que te matava”, desesperava a princesa. “Já estamos casados, minha querida, pelas leis dele, por um sacerdote da vossa religião, ele tem de aceitar”.

“Ele nunca me irá perdoar por ter casado contigo. Tu és um mudador de histórias. Tens-nos cativos nas tuas prisões de papel. Ele nunca vai aceitar”, replicou Laiane desesperada. “Eu tenho livros... para nós significa amor e liberdade”, retorquiu Michel.

“O poder de viver as nossas vidas”, interrompeu-o ela tristemente, “de rasgar uma folha e acabar com parte da nossa história, de pegar numa caneta e reescrever as nossas vidas.” “Não, eu não sou assim. Eu amo os meus livros, eu protejo as vossas vidas, as vossas histórias. Viste a minha biblioteca. Os livros não são prisões de papel, são vida. São as folhas que vos dão vida. Sem elas vocês não existiriam.”

Ouviram um resfolegar de cavalos e pensaram em fugir mas não foram a tempo. Homens armados agarraram-nos e conduziram-nos amarrados. Eram os cavaleiros do rei, quanto chegaram ao castelo foram levados para o salão principal, onde se encontravam o rei e a rainha, sentados nos seus tronos. Pareciam de pedra.

“Agora não nos podem manter separados, somos casados”, disse Michel, com a cabeça erguida. “Que provas existem desse matrimónio?”, questionou o rei com desprezo. “Todo o meu povo assistiu, e algum do seu também e o seu sacerdote abençoou a nossa união.” “Irei ter uma palavrinha com ele”, a seguir soltou uma gargalhada dolorosa exclamando: “e agora, onde vão viver? Ela não pode sair do meu reino. Ela morrerá.” “Eu posso ficar aqui. Eu abdico de tudo... só para ficar com ela”, afirmou Michel, segurando a mão de Laiane.

“Não podes”, gritou o rei. Chamou os guardas, “tirem este homem daqui. Levem-no. Ele tem de sair do meu reino. JÁ.” Os guardas começaram a arrastar Michel até que Laiane disse com ar desafiador: “os colares não funcionam, tentamos voltar mas não conseguimos O rei perdeu toda a sua cor, sentou-se devagar e exclamou: “mentes, não é possível.” “É verdade...vamos à clareira e assim verá.” A rainha encostou-se ao trono, escondeu o rosto nas mãos e chorou. “Vamos lá”, disse o rei. “Tragam-nos”, ordenou aos guardas, “e chamem o mago e os conselheiros.”

Reuniram-se todos na clareira à volta da grande pedra, e o jovem casal tentou inúmeras vezes regressar ao reino de Michel. O mago fez feitiços, os conselheiros tentaram à vez e até o próprio rei experimentou. Nada funcionou. O príncipe não conseguia regressar. “Estamos perdidos”, exclamou o rei, “temos de arranjar uma forma. Descubram uma maneira dele regressar. JÁ.”

Fim da primeira parte

Maria José Magalhães

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