sexta-feira, 20 de março de 2020

Conto: O cuidador, de Maria José Magalhães - Parte II


De volta ao castelo, a princesa foi sozinha ter com o pai e falou-lhe meigamente. “Pai, porque insistes em me separar de Michel? Não entendo. Ele faz-me feliz. Não consigo perceber porque não aceitas a nossa união.”

“Ele tem de regressar, senão estamos perdidos, sai daqui, deixa me sozinho, deixa-me pensar”, disse-lhe irado. Laiane regressou para junto de seu marido. “Não compreendo o porquê de tanta intransigência, alguma coisa se passa, existe aqui algum segredo, algo grave, que ele não nos conta.”

Passou-se muito, muito tempo e o rei cada vez ficava mais zangado, sempre que via o príncipe ficava vermelho de raiva. Estava sempre em reuniões de concelho e todos os dias obrigava o príncipe a tentar regressar para o seu povo, o que ele fazia, mas sem sucesso. E um dia, o príncipe adoeceu, foi o primeiro... os outros seguiram-lhe.

Na aldeia a vida corria normalmente, o castelo estava abandonado, nunca mais ninguém lá foi. O príncipe desapareceu, assim como os criados, na noite do casamento. No início os aldeões ainda passavam pelas imediações do castelo, mas com o tempo foram-se esquecendo e a vida continuou.

Em casa de Nathalie faziam-se as limpezas da primavera, as filhas, genros e netos ajudavam. Pierre, o neto do meio, esvaziava o grande armário da sala para depois se limpar. No meio de pratos, chávenas, figuras de porcelana, garrafas de vinho guardadas para ocasiões especiais, e várias quinquilharias encontrou um livro antigo, tentou abrir capa de cabedal mas não foi capaz, tentou de várias formas, até foi buscar uma faca à cozinha...mas nada. Desolado foi ter com os avós e perguntou-lhes: “que raio de livro é este que não abre?”

A avó tapou a boca com a mão e com espanto exclamou: “nunca mais tinha pensado neste livro, trouxe-o da biblioteca do castelo há muitos anos atrás, devia ter a tua idade Pierre, era maravilhosa e tinha tantos livros. Mas se calhar são todos como este, e para que servem livros que não se podem ler. Nunca o consegui abrir”, pegou carinhosamente no livro e afagou levemente a sua capa rugosa.

Pierre não conseguia deixar de pensar no livro, na biblioteca e no castelo. Até que se decidiu a ir lá e investigar. Uma manhã bem cedo preparou um farnel e partiu para o castelo. Não era longe mas o caminho era assustador, escuro e muito fechado. Finalmente chegou, abriu o portão e a porta da entrada que, curiosamente estava aberta. Entrou, chamando: “uhuh.. está aí alguém?”. Ninguém respondeu.

Investigou um pouco no andar de baixo, subiu até ao primeiro andar e entrou em alguns dos quartos, até que descobriu a biblioteca. Era realmente magnífica, pegou em alguns livros e todos se abriam, eram livros normais.

No dia a seguir voltou preparado com panos, baldes e sabão. Limpou toda a biblioteca, de uma ponta a outra, demorou uma semana inteira. Sempre que podia regressava, subia a uma das muitas escadas que davam acesso às prateleiras superiores, escolhia um livro e sentava-se embrulhado numa manta num dos confortáveis cadeirões a ler e ali sentado naquele castelo viveu aventuras fantásticas.

Entretanto, no reino dos oito lagos, todos tinham adoecido, estavam cansados, magros e cada vez mais pálidos. Até que um dia o rei acordou um pouco melhor, sentia-se ligeiramente mais forte e o tremor das mãos passou um pouco.

Nathalie ouvindo o neto sair de casa numa manhã chamou-o e disse-lhe entregando-lhe o velho livro: “meu filho, devolve este livro à sua biblioteca, nunca o devia ter trazido. Pode ser que ele lá se abra e desvende os seus segredos. Leva-o para casa, por favor.” Pierre assim fez, pegou no livro e foi mais uma vez para o castelo.

Quando lá chegou procurou o lugar do livro, encontrou um espaço vazio numa prateleira ao pé da janela. Mas antes de o devolver experimentou levantar a capa e esta abriu docemente, como que a dizer: “podes-me ler”. Sorrindo Pierre sentou-se no seu cadeirão preferido, embrulhou-se na manta e começou a ler, era uma vez num reino muito, muito distante com oito lagos... Embrenhado na história nem deu pelo tempo passar, guardou o livro e regressou a casa.

O rei sentia-se cada vez melhor, até a rainha já se conseguia levantar. Foi ao quarto do príncipe e encontrou-o deitado na cama, e a sua filha cansada, também doente velava por ele dia e noite. “Minha filha, preciso que o Michel vá até à clareira e tente mais uma vez regressar a casa.” Indignada, Laiane respondeu: “meu pai, mesmo vendo que ele está a morrer, não desiste dessa ideia... que cruel é.” “Michel, preciso que se levante e venha comigo”, disse o rei ao príncipe. “Não pai, ele não vai a lado nenhum, está demasiado fraco.” “Tens de lhes contar a verdade, meu marido”, disse a rainha encostada à ombreira da porta para não cair. “Minha querida devias estar a repousar”, declarou o rei. “Diz-lhes a verdade”, disse ela, deslizando para o chão do quarto sem forças”. “De que está a mãe a falar, conte-nos pai, já chega de segredos”, gritou Laiane, chorando.

O rei pôs as mãos na cabeça e pesaroso desculpou-se: “minha filha, peço-te perdão, não queria que sofresses, pensei que ias esquecê-lo e tudo ficaria como dantes. O Michel não é um mudador de histórias, é um cuidador. Sem ele para tomar conta dos livros, sem ele para nos ler, nós definhamos e perdemos a nossa vida, a nossa existência. A nossa vida só existe nesses livros, nessas finas páginas de papel. Sem os leitores não somos nada, não existimos, somos esquecidos e morreremos. Por isso adoecemos, já estamos a desaparecer, porque não existe ninguém que se lembre de nós. Mas hoje acordei melhor, tinha alguma força, alguém me leu, eu sinto. Eu apareço em mais do que um livro, a minha vida é longa, já fui um jovem como tu, minha querida. Michel tem de voltar, para que nós possamos continuar.

O príncipe, com uma voz débil, murmurou: “eu vou, e tentou-se elevar da cama, sem sucesso. O rei e sua filha em lágrimas, ajudaram o príncipe a levantar-se. Levaram-no até à clareira numa liteira, com a ajuda de alguns homens. Quando chegaram, ele fechou os olhos, deu a mão a Laiane, tocaram nas pedras dos colares e conseguiram, atravessaram, estavam de novo na biblioteca.

Fim da segunda parte.

Primeira parte aqui.

Maria José Magalhães

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