sexta-feira, 20 de março de 2020

Conto: A estante, de Ann Yeti


A estante repleta de livros cai com estrondo sobre a cama!
De repente, uma torrente de palavras – amor, ódio, tristeza, sangue, sexo, lágrimas – derrama-se sobre mim e sufoca-me. Desperto estremunhada, aturdida, estarrecida, perdida no negrume do fim dos tempos. Sinto-me soterrada por debaixo de um peso descomunal; uma dor magoada percorre todo o meu corpo, ouço as batidas descompassadas do meu coração como um tambor a ressoar-me aos ouvidos. Quero emitir um grito, um chamamento, um pedido de socorro, mas apercebo-me de que nenhum som sai da minha boca; tenho um nó atravessado na garganta, os pulmões comprimidos. Imóvel, presa na escuridão, incapaz de articular um gesto, um movimento, tento perceber se estou viva.

Consigo sentir, na cama, ao meu lado, o meu marido que dorme. Ouço-lhe a respiração pesada, pausada, de quem dorme tranquilamente…
Mesmo quando as discussões são monumentais, ferozes, atrozes, ele chega à cama e dorme tranquilamente. Mesmo nos dias em que há gritos, e choros, e quase-bofetadas, ele chega à cama e dorme tranquilamente. Mesmo nos dias de supremo desdém, de olhares reprovadores, de silêncios que agridem, ele chega à cama e dorme tranquilamente.
Eu, em noites insones com a minha raiva, o meu desespero, a minha mágoa, os meus medos, e ele a dormir tranquilamente.
Mesmo nas vezes em que ele chega a casa encharcado em mentiras, impregnado de odores estranhos e de manchas suspeitas, ele chega à cama…

***
Acordo…
Exausta, um pouco suada, a boca seca, um sabor amargo a subir-me pela garganta, um aperto no peito… Abro e fecho os olhos de forma cadenciada para me habituar à penumbra. Vislumbro uma claridade ténue que entra pela janela às primeiras horas da madrugada. Levanto-me em silêncio e percorro o quarto: a estante continua bem presa à parede, a poltrona no meu recanto de leituras, a manta macia onde me aconchego com os meus livros em todas as horas dos 8 anos de desamor que tenho compensado com as aventuras, os amores, os prazeres, as proezas e os sonhos dos personagens que me fazem companhia.
Percebo, enfim, que o meu sonho não foi um pesadelo: a minha vida é o pesadelo. A derrocada de um casamento feito de premissas falseadas, promessas falhadas, ilusões perdidas.
O brilho do sol nascente vai iluminando a janela com cada vez mais intensidade. Caminho, resolutamente, em direção à luz. Estou viva, pronta a despertar do pesadelo, consciente de que vou ter de começar a reconstruir-me como ser humano.
Vou ter de remover os escombros dos sonhos estilhaçados, da autoestima à deriva, dos medos e fantasmas da solidão que se atravancaram no caminho e que me têm impedido de avançar. Sobrevivi. Sou mulher, sou forte, sou resiliente. O amanhã começa hoje!

Ann Yeti

3 comentários:

  1. Bela homenagem à mulher, à "Manta de histórias"!Parabéns!

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  2. Mensagem de esperança
    Sobre um assunto tão delicado
    Não esperar por amanhã porque a vida acontece hoje
    Alexandra
    @alex&jo_bookstagram

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