Julieta estava estafada depois de um longo dia de trabalho. Exercia um cargo de contabilista numa multinacional e a sua rotina era marcada por números e contas infindáveis.
Mas ainda assim, preferia a agitação do escritório à solidão da casa vazia que a esperava imaculada ao fim do dia.
Desde que ele partira que aquela casa deixara de fazer qualquer sentido na sua vida. Tinham-na comprado e decorado juntos. Tinham planeado tudo ao ínfimo pormenor. Mas agora, ela estava sozinha e, a cada novo dia, se tornava mais doloroso enfrentar as madrugadas no vácuo daquela casa.
Queria vendê-la, porém, aquele espaço era o sonho de uma vida a dois do qual ela não se conseguia desfazer.
Abriu a porta e olhou vagamente em redor da sala. Um sofá de pele ao centro fazia as honras, quadros caros adornavam as paredes brancas e um tapete persa jazia sobre o chão de linóleo.
Descalçou os sapatos de verniz e caminhou até ao sofá. Sobre a mesa de vidro mesmo em frente, uma caixa de sapatos estava entreaberta, despertando-a do transe habitual que não conseguia evitar sempre que adentrava pela porta.
Aninhou-se junto ao sofá e riu pensando, tanto dinheiro gasto nesta porcaria e eu prefiro sempre sentar-me no chão. Puxou a manta do sofá para si e cobriu as pernas, enquanto se acomodava. Ainda ponderou ler um livro, dos muitos que enchiam a sua estante, talvez isso a fizesse ignorar o dia que estava marcado no calendário. Mas ler não a ajudaria a esquecer.
O número sete pairava na sua mente, lembrando-a de que ele fora embora e deveria estar ali.
Pegou numa caneta e retirou da caixa um caderno de capa dura e folhas já amarelecidas, onde começou a rabiscar uma carta.
Espero que no céu o tempo esteja mais agradável do que por cá. Há uma semana que chove sem cessar. Mas o que é uma semana de chuva comparada com toda a desordem que deixaste no meu peito, Gabriel?
Juro que já pensei em largar tudo, só para ir ter contigo. É certo que já sabíamos que irias embora, logo que te diagnosticaram o aneurisma, mas será que o céu estava assim tão desesperado para te roubar de mim?
Eles dizem que está na hora de seguir em frente, contudo, seguir em frente não faz sentido se eu souber que quando chegar ao meu destino, não te encontrarei de braços abertos para me receber.
Guardo o arsénico na gaveta junto à cama porque estou cansada e prestes a desistir. Mas se me visses não estarias orgulhoso e, por ti, talvez hoje eu seja capaz de o atirar para o lixo.
O meu coração martela desenfreadamente no peito, como se desejasse escapar-se da caixa torácica. E eu choro.
Penso em todas as histórias de amor que já foram escritas e vividas. Eu sei que não gostarias de me ver nestes prantos e, por ti, talvez hoje eu pondere dançar na chuva. Tu, que sempre gostaste de ver os meus cabelos molhados…
Enquanto Julieta escrevia, a chuva amainou e uma fresta de sol perpassou a cortina da sala. Julieta levantou-se, cambaleando, e aproximou-se da janela. Hesitou, pensando se deveria ou não, puxar a cortina.
Julieta não sabia ainda o que era suposto fazer para seguir em frente, no entanto, sabia que nem todas as histórias de amor precisam de ser trágicas.
Ele partiu, mas ela ainda cá estava e, seguir em frente, talvez se resumisse à capacidade de puxar a cortina e deixar o sol entrar. E pela primeira vez em dois anos, ele entrou. Tal como era suposto.
Letícia Brito
Sobre a autora
Letícia Brito nasceu em 1996. Apaixonou-se pela escrita de contos infantis aos 9 anos e logo começou a ter as suas histórias publicadas num jornal.
Entre 2015 e 2017, ganhou dois prémios literários, publicou o seu primeiro romance Nos Braços do Vagabundo, participou em antologias poéticas e atingiu mais de 94 mil visualizações no seu blogue pessoal onde regularmente partilha críticas literárias.
Em setembro de 2018 regressou ao romance com a história de Luísa, “O Dia em que Chegaste”, mas antes mesmo de o ano findar, já tinha concluído uma nova história.
Não sabe bem quem é quando não escreve e, talvez por isso, já tenha iniciado a escrita daquele que, quiçá um dia, possa ser o seu quinto romance.
Atualmente escreve contos e crónicas para o jornal Gazeta de Paços de Ferreira.